Oitenta flechas para atrair a cotovia
CARTA EM MESA PÉ-DE-GALO
para o José Colaço Barreiros
Fiquei enfim, querido Pasolini, saturado
daquele mundo antigo, das balelas
de espíritos caducos como as rameiras
do Império Romano. Foi do que me salvei
dum expediente que me amolava o espírito
e o declinava em pára-raios,
repetindo sem dúvidas velhas
formalidades, predominações (sabes como
é proibitivo falar em classes) que sobrepunham
razões e deuses alheios ao meu ânimo
secreto, intempestivo. Voltei ao barro,
ao descompasso clandestino, a uma respiração
atreita aos ziguezagues de cada dia,
o que me alarga os horizontes e me não confina
em moldes. E às vezes uma força eruptiva
salta aos olhos, provinda do plinto do inesperado
onde, di-lo Heraclito, conflui a espera.
Ainda ontem tentava explicar a dois esquálidos suíços,
amedrontados pela pobreza em África
— this is the middle age, the middle age…—
que a vida deles sem esse testemunho
seria um mero palanque declamatório
e que o martelar nas íris das lancinantes gaiolas
da miséria, os melhoraria como seres humanos
implodindo-lhes os belos corais da letargia?
Mas arrancar suíços à previsão dos mecanismos,
à sua comedida, meridiana torpeza? Mostrei-lhe
o matutino, onde se lia: «Em Neuchâtel, suíço
rapta crianças de dois anos para as devorar».
The real return of the middle age, repliquei.
Não acreditaram, e coléricos pretendiam
ter sido a notícia inventada por um jornalista de mal
escarificado na alma. Peut-être. No circo romano,
a barbaridade espirra pedras pelos olhos.
Porém, crer que o Bem é simétrico ao progresso
das nações é uma ingenuidade que decapita mitos.
E voltaram ao hotel, de olhos fixos no negrume das peles
temendo encontrar pelo caminho trupe de canibais.
Como explicar a espíritos tão arreigados
ao decoro, aos impostos, que há uma poética do sujo,
que a vizinha circunvalação do trágico levanta
dos escombros as magnólias, o prazer que unge
numa pequena conquista, e que o urbanismo,
o vero, é cosa mentale? Necessitariam
os filhos do conforto, escoltados
pela gadanha da História, de ter nascido nas faldas
de Friul, como tu ou de escorpiões pontapeados
por pastores, como eu, para descortinarem
que por detrás dum sobressaltado
e férreo desajuste do destino cada vida impõe
uma feraz alegria que a resgata,
aos alicates da estatística. Tinha comprado um honesto
vinhito sul-africano para partilhar com eles —
mais fica. Deixemos os juízos aos janotas,
tique-taque, tique-taque, tique-taque, e
sozinho deglutirei as lágrimas de riso de Lázaro.
Douda Correria#82
Oitenta flechas para atrair a cotovia/ Livro 1 – António Cabrita
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