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  • O Grande Frémito da Paixão

O Grande Frémito da Paixão

6,00 €  

desenho gráfico de João Bicker
Fenda , 2002


O Poeta subiu pelo andaime acima à procura da palavra.
Palavra que se lhe recusava, que pelas escadas já não poderia, nunca, alcançar. Palavra manhosa, palavra sabida, palavra instruída em todos os livros. Como o poeta, também ele instruído em muitos livros; apesar de tudo em muito menos livros do que a palavra, o que explica este desencontro inicialmente referido,
quando se mencionava que pelo andaime acima o poeta caçava a palavra sem poder alcançá-la.

O andaime é branco, de madeira, por ele o poeta trepa.

Uma vez, na antiguidade, o poeta teve a palavra debaixo da língua. Fora pela manhã, na infância, quando à porta de casa, ao sair, se dirigia para a cidade. Entre a cidade e a porta da casa que habitava o poeta, a erva crescia, livre e certa, pintando terra de verde. E havia árvores, poucas e altas, por ali no caminho. A palavra ficara-lhe dessa vez debaixo da língua e até alcançar a sombra das árvores sobre o caminho lutou o poeta para retirá-la de debaixo da língua e não conseguiu. O poeta meteu a mão na boca e foi então que a palavra se escapou de vez, pois concentrando-se entre a mão e o debaixo da língua o poeta distraíra-se por segundos do que procurava com tanta obcessão.

De outra vez o poeta estava sentado, sem pensar nesse momento na antiguidade nem na infância, com uma rapariga, em cima da cama do seu quarto (dele). Será necessário dizer que continuava a procurar a palavra? Continuava. E a palavra continuava também, manhosa e sabida, a escapar-se-lhe. Tão instruída, a palavra, que vinha às vezes passear-se pelos lábios do poeta, com ares de provocação ofensivos e desagradáveis, quando o sabia distraído de si. Como nessa tarde, quando o poeta estava com a rapariga e por momentos, contra vontade sua, por distração inevitável, esquecera a palavra para pensar apenas no corpo da rapariga em cima da cama. A palavra, atenta, a rebentar de ironia, passeava-se pela sua boca, da sua língua fazia rampa e deslizava, nos seus lábios rebolava-se, era um desafio permanente ao talento do poeta e escapou-se, à procura de refúgio no corpo da rapariga, entre os balõezinhos dos dois seios reclinando o corpo para descansar.