Olhou o espelho de barbear do pai partido ao meio. Deu um passinho em frente para ver a sua imagem por inteiro num dos lados, pois a quebradura fragmentava-a em duas e distorcia-lhe as proporções. Queria medir com precisão a barriga. De silhueta em frente ao espelho, esfregou o ventre. A protuberância, não tardaria, dava de si ao mundo. Só pensar nisso atemorizava-a. Subia-lhe um frio pela espinha que lhe arrepiava os cabelos da nuca. Interrogava-se se haveria um mundo onde a culpa fosse perdoada, um lugar para lá da bola redonda onde o desvario, o descuido não desse origem à maledicência. Tais suposições transformavam-se e esvaneciam-se no espírito em segundos, pois os dedos parrudos, de tanto lavrarem, reproduziam a forma arredondada do ventre, dedilhavam da esquerda para a direita e da direita para a esquerda todos os cantos do seu abdómen. Esse gesto alargava-lhe os horizontes do imaginário e permitia-lhe ver para lá da pele, indagar sobre o bichinho que se formava em sussurros que só ela entendia. (…)