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  • Motores Gerais

Motores Gerais

10,00 €  
IVA incluído

« (…)
uma pequena tragédia ou, talvez isso,
a história de uma pequena tragédia que,
não podendo ser cantada em glória,
há que guardar na memória,
apertar na mão com força
e fechá-la no bolso de dentro
do casaco e do peito
e não deixar fugir o que seja;
e nessa tarde definitiva
diante das colinas suburbanas,
de edifício principal atrás de mim
e outra vida à minha frente,
percebi qualquer coisa milenar
sobre o fluxo dos átomos em direção ao espaço,
oficializei as palavras
o meu pai morreu hoje de madrugada
e os meus olhos encheram-se de água através desses sons,
fiz que sorri diante das árvores a vibrarem contra o azul
e os meus olhos encheram-se de árvores através dessa luz,
as unhas descolaram o pouco de mim ainda agarrado à pele,
o meu corpo fendeu-se entre duas carnes
e os meus olhos encheram-se de água
e no tremor dos ramos
o azul cortava navalha o céu
tornado íris monstruosa
e eu era som inteiro quebrado em cordas
e grito prolongado de dentro para dentro,
desarticulado
tudo explodia,
tudo direto ao centro de mim,
ao núcleo de uma pétala,
e o grito enfraquecido nos braços
e os meus olhos tornados íris
abertas entre o céu e o som
e toda a maquinaria cessou,
desfazendo-se em vapor,
e eu deixei.»

 

Douda Correria#98

Motores Gerais – João Silveira

(ilustração de capa de Rita Faia/ composição de Joana Pires)

« (…)
uma pequena tragédia ou, talvez isso,
a história de uma pequena tragédia que,
não podendo ser cantada em glória,
há que guardar na memória,
apertar na mão com força
e fechá-la no bolso de dentro
do casaco e do peito
e não deixar fugir o que seja;
e nessa tarde definitiva
diante das colinas suburbanas,
de edifício principal atrás de mim
e outra vida à minha frente,
percebi qualquer coisa milenar
sobre o fluxo dos átomos em direção ao espaço,
oficializei as palavras
o meu pai morreu hoje de madrugada
e os meus olhos encheram-se de água através desses sons,
fiz que sorri diante das árvores a vibrarem contra o azul
e os meus olhos encheram-se de árvores através dessa luz,
as unhas descolaram o pouco de mim ainda agarrado à pele,
o meu corpo fendeu-se entre duas carnes
e os meus olhos encheram-se de água
e no tremor dos ramos
o azul cortava navalha o céu
tornado íris monstruosa
e eu era som inteiro quebrado em cordas
e grito prolongado de dentro para dentro,
desarticulado
tudo explodia,
tudo direto ao centro de mim,
ao núcleo de uma pétala,
e o grito enfraquecido nos braços
e os meus olhos tornados íris
abertas entre o céu e o som
e toda a maquinaria cessou,
desfazendo-se em vapor,
e eu deixei.»

 

Douda Correria#98

Motores Gerais – João Silveira

(ilustração de capa de Rita Faia/ composição de Joana Pires)