Kayadara
Kayadara
Amadou Hampâté Bâ
tradução do livro: Malé Kassé e Zetho Cunha Gonçalves
Falas Afrikanas, 2025
110 páginas
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Kayadara introduz-nos na tradição oral dos povos fula da África Ocidental , oferecendo-nos um olhar sobre os seus valores morais, materiais e espirituais. Amadou Hampâté Bá narra uma viagem iniciática ouvida por grandes contadores e sábios na sua região natal. Através de um longo poema alegórico em versos livres acompanhamos as aventuras ocultas e assustadoras, misteriosas e simbólicas de três companheiros até à compreensão do nosso mundo e à iluminação.
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da Introdução:
«Kaydara é o título de uma história didáctica que faz parte do ensino tradicional do povo fula da região da curva do rio Níger.
É habitual o mestre contar a história em serões, perante um público de jovens e idosos. Na maior parte das vezes, conta apenas fragmentos; chega ao círculo dos aldeões, senta-se, conta a história, pára e só retoma o seu relato três meses mais tarde. Porém, por vezes, conta-a de uma só vez durante “as longas noites da estação fria”, enquanto um guitarrista o acompanha. Ou pode começar subitamente a desenvolver um dos símbolos, por ocasião de um acontecimento que tenha analogias com esse mesmo símbolo.
Diz, pois, o mestre expressamente no início da sua história: “Sou fútil, útil e instruidor”.
No entanto, ele não contará Kaydara da mesma forma para crianças ou para eruditos. Há um resumo do conto para os ouvintes não informados, e um conto esotérico a que só faz alusão perante aqueles que o conhecem ou são capazes de o compreender. Qualquer pessoa pode ter acesso ao conto. Depende apenas do seu grau de maturidade intelectual. É assim que o cativo ou o servo conseguem muitas vezes tornar-se os herdeiros espirituais do seu senhor, porque a vida lhes deu a oportunidade de o ouvir mais vezes do que qualquer outra pessoa.
Um mestre sem herdeiro pode também deixar os seus conhecimentos à sua filha, que, por sua vez, iniciará a sociedade. E este é apenas um dos indícios do estatuto da mulher Fula, tão privilegiada entre as de outras etnias africanas!
No entanto, as mulheres interessam-se pouco pelas ciências místicas, preferindo geralmente dedicar-se aos segredos da cozinha (que, aliás, é sagrada, com todo um ritual), e há poucas mulheres “iniciadas” na sociedade Fula. (Mas este “desinteresse” é, sem dúvida, o resultado de um condicionamento, e não devemos julgar prematuramente a falta de capacidade de uma mulher para penetrar na filosofia do seu grupo).
Assim, em princípio, qualquer indivíduo do grupo pode tornar-se um “iniciado”, consoante o tempo que consagra à escuta do mestre e o grau de compreensão que a sua inteligência poderá alcançar. Com base nestes dois critérios, dá-se uma selecção natural que faz com que, em cada dez adeptos, apenas um ou dois consigam evoluir com desenvoltura nos arcanos desse magistral ensinamento.
Mas não nos deixemos iludir! O facto de ser oral, “igualitário” e anedótico, não significa que seja fácil de ensinar.»