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  • Há Rios que não Desaguam a Jusante

Há Rios que não Desaguam a Jusante

19,00 €  
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Há Rios que não Desaguam a Jusante
Nuno Dempster

Tudo se passa em torno do coronel Pierre Latour, militar de antes e durante a independência do Congo ex-belga, mercenário na guerra de secessão do Catanga e no início da guerra colonial de Angola. Solitário, herdeiro de fortuna incontável, que acrescenta. Chega a Portugal em 1962, onde fica como exilado político até pouco depois do 25 de Abril, altura em que se junta aos que então fugiam do país. Mas a narrativa continua, em Portugal, até meados da presente década, numa longa marcha do mal e na resistência pouco numerosa do bem.

 
Excerto

(…) Quando entrou em casa, Latour apercebeu-se de que estava alguém no interior. Ouviu um ruído metálico. Quem quer que estivesse não tinha notado a sua entrada e abrira uma torneira. Era na cozinha. Saiu em  silêncio. Abriu o porta-luvas do carro e trouxe a arma, uma pistola Browning de guerra, encostou a porta da entrada e avançou pé ante pé. Chegado ao umbral da porta da cozinha, deu um salto, pôs-se em posição de tiro e gritou não te mexas, parecia uma cena das séries policiais do zapping. A mulher deu um grito e desmoronou-se. Por um momento, a cabeça dele ficou confusa, depois viu estendida Marie Fournier, a empregada que cuidava da casa o ano todo. Tomou-lhe o pulso, estava viva, encheu as mãos em concha da água que corria e deitou-lha sobre o rosto. (…)


Nota de leitura

A banalidade do mal que, a propósito do julgamento de Adolf Eichmmann, Hannah Arendt apontou como um dos paradoxos da barbárie nazi, cobre apenas parte da inscrição problemática do mal no espaço da história e da cultura. Tão perturbante quanto a sua banalização, ao abrigo de hábitos, cadeias de comando e situações limite, é o seu fascínio. O mal é fascinante, ou pode sê-lo. O mal é belo e aventuroso, ou pode sê-lo. O mal atravessa histórias de amor e de coragem, é rico e poderoso, acrescentando a sedução do poder ao encantamento da subversão.

Há Rios que não Desaguam a Jusante coloca-nos diante de uma narrativa que põe a nu o fascínio do poder e da falta escrúpulos que constroem personagens tão moralmente repulsivas quanto cativantes. Cativantes na própria repugnância, nos interstícios da falha que atravessa o humano, e faz com que a desumanidade seja uma forma irrefutável de humanidade.

Num livro de um fôlego assinalável, e de um registo lúcido e controlado, Nuno Dempster elabora sem cedências um romance que constrói uma visão de mundo impiedosa, mas sem maniqueísmo. O mal confunde-se com a beleza, a dor com o prazer: o prazer de alguém parece ser sempre a dor de outro. Sem os relativizar, a narrativa constrói a diferença de perspectivas, com uma verosimilhança e um olhar interior notáveis. Mas, sobretudo, importa o rigor da escrita e do olhar: focados, conscientes do peso de cada momento narrativo. Mesmo os acontecimentos que se afiguram banais têm uma função narrativa clara e uma densidade específicas. O final, descida ao inferno ou à revelação, põe a nu a natureza verdadeiramente banal do mal: a sua inscrição no corpo da história. Isso a que chamamos derrota ou sucesso e a que, com o tempo, aceitamos como o verdadeiro rosto da história.

 

H.G. Cancela, Fevereiro de 2019