A analfabeta
A analfabeta - relato autobiográfico
Agota Kristof
desenho capa: Afonso Paiva
tradução: Rui Almeida Paiva
edição, revisão e design: Sofia Gonçalves
Dois Dias, 2025
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Mantendo por um lado, num equilíbrio exímio, uma escrita depurada e assertiva, e, por outro, uma escrita profundamente poética (característica que é transversal na sua obra), Agota Kristof revela-nos, em A Analfabeta, os momentos chave da sua vida.
A partir de um número mínimo de episódios explorados em poucas páginas, concentra, desta forma, a matéria literária, em cada capítulo, com a letalidade e rigor de uma arma demolidora. Agota Kristof é, aqui, uma testemunha da sua experiência – desde a primeira infância até à entrada na velhice. Marcam-na a guerra, a fuga do seu país, a separação da família, a sobrevivência enquanto refugiada, na Suíça, e, sobretudo, a separação insanável para com a sua língua materna, o húngaro, e a luta permanente, que durará toda a vida, para conquistar o francês, a tal língua “inimiga” que a deixou de novo analfabeta, aos vinte e um anos, e que foi a principal responsável por ir aniquilando a sua língua materna.
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«Um dia, a minha vizinha e amiga, diz-me:
— Vi na televisão um programa sobre mulheres trabalhadoras estrangeiras. Trabalham durante todo o dia na fábrica e à noite ocupam-se das tarefas domésticas e dos filhos.
Digo-lhe:
— Isso foi o que fiz quando cheguei à Suíça.
Ela diz:
— Mas elas, para além disso, nem sequer sabem falar francês.
— Eu também não sabia.
A minha amiga sente-se incomodada. Não me pode contar a história impressionante das mulheres estrangeiras que viu na televisão. Esqueceu-se de tal maneira do meu passado que é incapaz de imaginar que eu também pertenci àquele grupo de mulheres que não conhecem a língua do país, que trabalham nas fábricas durante todo o dia, e que cuidam da família à noite.»
